Há meses já que uma nossa professora do curso de Direito trabalha conosco, fora das aulas, como atividade complementar à carga horária, a leitura e a explanação da tragédia grega. Em Ésquilo estão tratados brilhantemente diversos pontos da doutrina jurídica. A mestra, amante das artes, quer que, pelo Direito, tenhamos contato com a alta Literatura.
Eu, no entanto, com pouco talento para as Leis e curiosíssimo quanto às Letras, tenho freqüentado tais reuniões não por Têmis, e sim unicamente pelas Musas. Vou lá para ver Clitemnestra tramar a morte de Agamêmnon, seu marido, assassiná-lo, confessar e defender-se lembrando a maldição que cerca os filhos de Atreu.
“Ousais então dizer que este feito
somente a mim se há de atribuir?
Não deveis mesmo acreditar que eu seja
a esposa de Agamêmnon; sob a forma
da companheira deste homem morto
foi na verdade o gênio vingador
acerbo e antiqüíssimo de Atreu,
do anfitrião cruel, que se quitou
do sacrifício ímpio de crianças
ao imolar agora este guerreiro.”
Eis a Oréstia, trilogia de Ésquilo. Aí está a sina dos filhos de Atreu, homem nefando, ímpio assassino de crianças, que condenou a própria semente à desgraça. Aí está Agamêmnon a ser apunhalado pela esposa; e seu filho Orestes a assassinar a própria mãe, condenando-se à perseguição das Fúrias vingadoras do crime consangüíneo. E por fim vê-se aí a sábia deusa Atena a instituir o justo tribunal, que absolve Orestes, e pelo qual passariam os criminosos dali em diante.
“ATENA
Prestai toda a atenção ao que eu instauro aqui,
atenienses, convocados por mim mesma
para julgar pela primeira vez um homem
autor de um crime em que foi derramado sangue.
A partir deste dia e para todo o sempre
o povo que já teve como rei Egeu
terá a incumbência de manter intactas
as normas adotadas neste tribunal
. . . . . . . . . . . . . . .
Sobre esta elevação digo que a Reverência
e o Temor, seu irmão, seja durante o dia,
seja de noite evitarão que os cidadãos
cometam crimes, a não ser que eles prefiram
aniquilar as leis feitas para seu bem”
.
. .
Por estes dias, a turma discutia uma possível mudança nos horários das aulas. E era esse o assunto em uma das rodas de conversa formadas nos intervalos entre uma aula e outra e à qual me uni.
– Pra que mexer no horário todinho só por causa de uma coisinha dessas? – dizia um dos meus amigos aludindo ao motivo caprichoso da mudança. – E ainda se vai prejudicar a reunião do grupo de estudo da tragédia!
Então, um dos nossos colegas, com desdém, exaltou-se e disse:
– Meu amigo, pra que a gente vai estudar obrinha láaa... – e apontou para o vazio, como a indicar a direção do lugar, que não sabia e que, no seu desprezo e ignorância, pouco se importava em saber. – A gente tem que estudar é pra concurso... – sentenciou com a maior convicção do mundo.
Um dos da roda, participante ativo dos tais estudos, fitou-o como se lhe fosse dar um soco. Respirou uns dois segundos e respondeu ao homem jovem que acabara de cuspir no rosto de um intelectual anterior a Cristo.
– Cada um tem seu objetivo quando estuda. Se o seu é passar em concursos – e o olhar fuzilante dizia, por trás da voz calma, “animal, ignorante, besta decoradora de assuntos!” – problema seu!...
Eu não reprovaria o nosso colega, e creio que nenhum do círculo o faria, se ele tivesse ido às vias de fato e dado uns bons sopapos no profanador do poeta milenar em cuja obra estão idéias sobre as quais se assentam bases da nossa civilização. Nosso amigo seria absolvido pelo soco providencial.
Ousais então dizer que este feito
somente a mim se há de atribuir?
Não deveis mesmo acreditar que eu seja
seu colega de turma; sob a forma
de condiscípulo deste homem tolo
foi na verdade o gênio vingador
acerbo e antiqüíssimo de Ésquilo,
do poeta genial, que se quitou
do sacrilégio ímpio a sua obra
ao cair de porradas neste bruto.
Filipe Cavalcante
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